Somos feitos de memórias, retalhos de tempo que nos transformam, reconhecemos o que somos a partir das memórias. Existem diferentes categorias de memórias; aquelas que gostamos de recordar, aquelas que preferiríamos apagar, e aquelas que de tão insignificantes e repetitivas não fazem o mínimo sentido, existem memorias intensas e memorias fracas. Construir memorias se torna difícil para alguns.
— Sabe aquelas pessoas que fazem todos os dias as mesmas coisas, se comportam do mesmo modo, comem nos mesmos lugares, vão aos mesmos cabeleireiros, andam sempre pelas mesmas ruas, escutam as mesmas musicas, assistem os mesmos programas, na maior parte das vezes, por sugestão de terceiros e não por vontade própria? Essas pessoas, que se esquecem de cultivar memórias, que vivem para satisfazer a vontade alheia, a expectativa dos outros e se esquecem de si mesmos, das suas vontades, dos seus ideais, do que realmente gostam, ficam como que estacionadas no tempo, em vidas sem sentido, sem sabor, sem escolha. Talvez, por não ousar escolher.
Memorias são momentos, instantes em que escolhemos estar presentes e estar presentes é sempre uma questão de escolha. A repetição é um ato mecânico e desprovido de consciência, como um adormecimento da alma. — Se estivéssemos presentes até mesmo nos nossos hábitos repetitivos, até a rotina viraria uma memória significativa. O problema é que não estamos, precisamos do estímulo para nos perceber.
Construir memorias que valham a pena ser lembradas, tem mais a ver com o risco. No risco há novidade, historia para contar, há sede de amar, perigo de errar, de mudar, começando com o jeito que temos de ver as coisas, O risco caminha junto como o acaso, eles se encontram no estrada da experiência, são análogos na sua essência e portanto, se complementam.
As memórias mais intensas, são as que pertencem ao acaso, aquelas as quais nos entregamos a viver no momento que acontecem, sem premeditar nada, sem esperar nenhuma repetição rotineira. Esses momentos em que estamos presentes, nos definem, definem a vida que somos capazes de levar, seja ela; fria, quente ou morna.
A vontade da potência que Nietzsche falava, o estar presente dos filósofos, a contemplação dos santos, o ócio criativo dos poetas. Todas essas coisas, que essencialmente são a mesma coisa, ajudam a sentir o que se esconde atrás dos muros da “normalidade”, da falta de novidade, da repetição absurda e irreal. Ninguém pode ser normal, ninguém pode se encaixar num estereótipo fabricado por que; ninguém é igual a ninguém. Existe uma força, uma capacidade inerte a cada ser, desenvolver e conhecer essa capacidade latente tem a ver com se conhecer e entender até onde somos capazes de caminhar, sem se apegar a aparente segurança aprisionadora existente em todas as rotinas.
A normalidade é uma loucura disfarçada, uma sutil prisão. Em nome da normalidade morrem os mais lindos sentimentos, as mais belas memorias são evitadas, quantas coisas que desejaríamos fazer e não fazemos em nome de tal “normalidade desumana”. É necessário cultivar memorias, como se cultiva qualquer outra coisa, com dedicação, com afinco, regando e transformando como um alquimista, o grosseiro em sutil, o tédio em inspiração, o vazio em algo que valha a pena ser lembrado, construído, criado.
E assim, tudo terá maior sentido no final, enquanto novas paisagens se apresentarem, construiremos novamente tudo o que somos, desde os escombros do que um dia foi. Assim, quando estivermos no final da vida, poderemos olhar para trás e apesar dos pesares, saber que valeu a pena arriscar.
Imagem: cena do filme; O sétimo selo de Ingmar Bergman (a morte jogando xadrez)
E por ultimo, duas frases do Nietzsche para refletir:
Verdadeiro eu chamo àquele que entra nos desertos vazios de deuses… Nas areias amarelas, queimadas de sol, sedento, ele vê as ilhas cheias de fontes, onde as coisas vivas descansam debaixo das árvores. Não obstante, a sua sede não o convence a tornar-se como um destes, habitantes do conforto; pois onde há oásis aí também se encontram os ídolos
“O que é bom? Tudo que eleve no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência.”